sábado, 2 de outubro de 2010

Sensibilidade Histriônica e Imagem Poética em Myriam Fraga

            Esta fala que dedico à poesia de Myriam Fraga é apenas mais um fio de voz que se entrelaça a muitos outros, criando aos poucos um coral de timbres variados, formado pelo desejo comum de celebrar a força e a singularidade dessa obra poética. Diferente do tapete de Penélope, o tecido dessas vozes não pára de crescer, de receber novos fios, novos cursos de dizer, novos discursos. Ele se eleva à medida que também cresce a percepção de que essa obra está em viagem irreversível para o lugar que lhe cabe na poesia brasileira contemporânea.

            Esse tecido começou a ser tramado há muitos anos, desde os primeiros livros da autora, publicados na década 60. Esse coro de reconhecimento, essa rede de ressonâncias foi se formando, então, desde as primeiras críticas, inspirou estudos sobre a sua lírica, motivou recitais e encenações de poemas, e se faz ouvir hoje, aqui, com toda intensidade, ao longo deste Seminário. Este Seminário que é uma iniciativa, em tudo digna de aplauso, desta Academia e, em especial, da professora Evelina Hoisel, a quem devemos a criação e coordenação do evento.

            Nos limites desta minha fala, no fio que me cabe entretecer nessa trama de vozes, quero dar relevo a uma vertente da obra de Myriam Fraga que é, ao mesmo tempo, uma questão temática e uma estratégia de enunciação da voz poética. Para iluminar esse recorte, eu uso uma idéia que está contida na expressão “sensibilidade histriônica”. Eu não sei se a noção de sensibilidade histriônica já foi usada, antes, fora do âmbito do teatro, em relação a outro tipo de experiências de percepção. Eu capturei essa expressão num livro intitulado Evolução e sentido do teatro, um livro escrito há algumas décadas e já bastante conhecido, de um teórico do teatro chamado Francis Fergusson. [1]
            Eu disse que “capturei essa expressão”, mas seria mais exato dizer que ela me veio à mente, que se ofereceu a mim, justamente enquanto eu relia os poemas de Myriam, após o convite para participar desta mesa. Naquele momento eu me lembrei que, por duas ou três vezes, assistindo a um recital, leitura dramatizada ou até uma encenação a partir de seu repertório poético, tive a vívida sensação, como espectadora, de que aqueles poemas pediam para ser encenados. [2]  (Eu cederia à tentação de dizer que aqueles poemas “haviam nascido para isso”, se não fosse muita pretensão alguém ousar supor que pode saber por que e para que nasce um poema, afinal.)

            A noção de “sensibilidade histriônica”, tal como proposta por Fergusson, é a de uma forma de percepção que leva a identificar e imitar ações. Para deixar claro seu argumento, o autor compara esse tipo de sensibilidade com a que se exige para a percepção da música: assim como um ouvido treinado percebe e discrimina sons, a sensibilidade histriônica percebe e discrimina ações. Essa forma de percepção, que é quase impossível de definir fora dos limites concretos de uma experiência, está presente, é claro, em maior ou menor grau, em cada um de nós, e pode ser usada com muitos propósitos. Para o que nos importa, no momento, basta lembrar que o autor associa esse tipo de sensibilidade ao que ele chama, de modo muito amplo, arte dramática. Também é possível dizer que essa via perceptiva, essa capacidade de perceber e de representar ações é o que conecta, o que torna possível criar um elo entre a arte do dramaturgo, a arte do ator e, sim, sem dúvida, a arte do espectador.

            Ora, o que me leva a sugerir essa forma particular de percepção para a leitura de certos poemas de Myriam Fraga, ou melhor, para a escuta desses poemas? O que me autoriza a transpor essa noção para uma obra lírica? Eu lembrei há pouco minha experiência de espectadora em leituras e encenações de poemas da autora, e é daí que poderia esperar a mais legítima autorização da minha fala. Eu disse, muito simplesmente, que esses poemas “pediam para estar em cena”. Sabe-se que é possível dizer isso a respeito de muitos poemas, por diferentes razões. Mas eu quero me referir, especificamente, a um grupo de treze poemas. Trata-se de uma espécie de “microcosmo” no interior dessa obra lírica, com uma característica muito especial, em que vejo a sensibilidade histriônica como uma dominante da expressão poética.

            São eles, os treze poemas: quase todos (e já se verá a importância desse “quase”) os da seção intitulada Femina, no livro de mesmo nome; o poema chamado “A esfinge”, da seção Bestiário, e o poema “A casa”, da seção Clepsidra, ambos no mesmo livro. [3]
           
            E eu começo, dramaticamente, pelo clímax. Para encurtar caminho. Começo pelo poema “Maria Bonita”. Chamá-lo de clímax não implica um juízo de valor, nem mesmo indica minha particular predileção como leitora, no sentido de eleger este dentre outros momentos dessa lírica. Quero dizer com isso que vejo esse poema, dentre os demais desse microcosmo que busquei organizar, como possivelmente o mais representativo dessa faculdade do sujeito poético de se projetar em personagens, de se apropriar das referências de figuras míticas ou históricas e de colocar diante do leitor um ser que tem corpo, voz, fisionomia, que nos olha frontalmente e diz “eu sou”, “eu quero”, “eu faço”.

            Maria Bonita, como sujeito da enunciação, começa por instalar o próprio cenário e as circunstâncias da sua fala:  “ Esta noite em Angico/ a brisa é calma./ No silêncio farfalham/ minhas anáguas/ como farfalham asas/ e no escuro minha carne/ cheira a mato.” A partir daí, a longa réplica dirigida a seu companheiro é, na superfície, como mensagem explícita, um convite ao amor, à celebração da paixão erótica: “Vem, meu amor e lavra/ este roçado/ como quem quebra/ um cântaro,/ como quem lava a casa;”. Mas a estratégia usada na enunciação em primeira pessoa permite que Maria Bonita, em sua fala, construa simultaneamente a figura do homem a quem faz esse convite:

Sou teu medo, teu sangue,
sou teu sono,
tua alpercata
de couro,
teu olho cego, miragem
dos vidros
com que miras
a mira do mosquete.

Sou teu sabre,
facão com que degolas.
Sou o gosto do sal,
veneno que espalharam
no prato.
Sou a colher de prata
azinhavrada. Sou teu laço.

Teu lenço
no pescoço.
Sou teu chapéu de couro
constelado
com estrelas de prata,
sou a ponta
de teu punhal buscando
o peito dos macacos.
Sou teu braço
a cartucheira cruzada
sobre o peito,
sou teu leito
de angico e alecrim. [4]

            Temos aí todas as marcas de indumentária, de costumes, de objetos familiares, todos os índices de um relato que já faz parte do imaginário brasileiro. Mas tudo isso nos chega transfigurado pelo olhar e pelo desejo de Maria Bonita. Nesse tipo de construção, criam-se certos jogos muito interessantes com as expectativas do leitor. Quando Maria Bonita diz:

Sou teu guia
tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
sou tua filha. Teu cachorro fiel,
tua égua parida.

Ou ainda:

Sou teu gado,
tua mulher, tua terra,
tua alma,
tua roça. Coivara
que incendeias e apagas,
tua casa.

            Tudo isso, que poderia soar à primeira vista como um discurso de submissão da mulher, logo revela uma face enganosa. Ao dizer “eu”, Maria Bonita é autora tanto de sua própria identidade quanto da de seu suposto interlocutor; ela institui as condições da fala e da ação. Por isso, quando a ouvimos dizer: eu sou “Teu cachorro fiel”, eu “Sou teu gado” somos levados a ver, ao mesmo tempo, o gesto que acompanha essa fala: “ Eu sou... porque eu digo que sou. Porque eu me ponho e disponho a ser, ao enunciar estas palavras.”  Por isso ela pode dizer também:  “Sou tua fera. Sussuarana/ no escuro – bote e salto./ Jaguatirica acesa nestes altos/ mundéus de teu alarme./ Sou o parto/ da morte que te espreita.” Ou então, muito simplesmente dizer que é “areia no sapato”...  [5]
   
            Nesse, como nos outros doze poemas que formam esse pequeno universo que mencionei, no interior da lírica de Myriam Fraga, temos uma espécie de projeção do eu poético em personagens claramente objetivadas, que tomam a palavra, e através dela criam cenário e figurino, gestos, corpos e relações entre corpos. Dizer que esses poemas convidam à encenação não implica dizer que eles necessitem disso para sua plena fruição. E este me parece um ponto muito importante.

            O que busquei sugerir ao trazer a noção de “sensibilidade histriônica”, tomando emprestado o termo ao domínio do drama, é justo a idéia de que esses poemas oferecem-se ao leitor em sua própria dimensão cênica. E é aí que se torna importante perceber o papel da imagem poética, o que para mim implica dizer: observar a ação da linguagem, a tessitura de som e sentido que é capaz de plasmar cenas, de engendrar acontecimentos. Cenas e acontecimentos que só podem ter existência naquele espaço, o espaço da linguagem, o espaço do poema. Então, assim como um ator é capaz de perceber e imitar ações com seu corpo e voz, o poeta por vezes utiliza um processo de auto-dramatização, que requer também que ele se desdobre em personagens; mas a matéria em que ele plasma esses seres, essas projeções do seu teatro íntimo, é a linguagem e todos os seus ritmos e cores.

            Eu falei de treze poemas, localizados no livro Femina, e é claro que não posso me deter em todos eles, no tempo desta fala, mas gostaria de citá-los brevemente. E isso é como fazer um desfile de figuras de mulher que todos nós reconhecemos, em parte; graças às referências históricas ou mitológicas, muitas vezes sem uma fronteira nítida entre umas e outras, vemo-nos diante desses poemas de Myriam Fraga como que revisitando velhas conhecidas. Em parte, apenas em parte. Porque as mulheres que aí surgem, que tomam a fala e dizem “eu”, que nos contam sua história, também nos parecem muito estranhas. Porque nós sempre ouvimos falar delas, ouvimos relatos sobre suas façanhas ou desventuras, mas quantas vezes tentamos, pelos sentidos, pela memória, pela imaginação, tentar encontrar em nós imagens capazes de dar corpo àquela experiência?

            É isso que faz Myriam Fraga, usando sua sensibilidade histriônica para mimetizar essas personagens arquetípicas, que habitam o imaginário coletivo, mas que em seus versos ressurgem transfiguradas, senhoras de seus desejos, sujeitos da própria fala. São todas elas imagens extraídas de uma constelação mítica, que fixa perfis e comportamentos moldados em situações exemplares; mas a alquimia que se processa no interior dos poemas consegue transmutar suas características e abrir a perspectiva de experiências insólitas.

            Veja-se Dejanira – cujo nome em grego significa “a que vence os heróis”; nós a conhecemos como a terrível esposa de Hércules, a mulher que conseguiu aniquilar esse prodígio da força ao fazê-lo usar uma túnica envenenada com o sangue de um centauro. Isso na mitologia. Mas a Dejanira que nos fala no poema é uma mulher sedenta, que vive na fronteira entre gozo e morte, ansiando por um amor violento, dilacerante, que nos seus sonhos toma a forma de um... claro, de um centauro.

Ás vezes ele me acorda,
outras me embala
e rasga com seus dentes
minha carne
e bebe do meu sangue
e me açoita
com o vento de sua cauda.

 E enfim, quando exausta
eu desfaleço
na cama ensangüentada,
ele deita ao meu lado
e lambe as chagas.” [6]

            Em “Pasifaé e o touro”, temos uma forte presença das referências míticas, e muito ganharia o leitor em conhecer a triste história da mulher do rei Minos, que por maldição de uma deusa vingativa apaixonou-se perdidamente por um touro branco. Dessa união, quase impossível, nasce o filho monstruoso: o Minotauro. Mas a calma e a delicadeza das imagens, nesse poema, pode sugerir ao leitor, para além do mito, a cena melancólica de um desencontro amoroso. Na fala dessa mulher há uma doída constatação da impossibilidade desse amor, que aos poucos se revela a impossibilidade do amor, mas não só pelos motivos da lenda, não só porque em torno dos amantes se constrói um labirinto.  “Sou delicada e cruel,/ tu és manso e assassino,/ mas não posso tocar-te/ e não ouso perder-te.”  [7]

            O poema “Labirinto”, embora ligado ao mesmo contexto mítico do anterior, faz com esse um contraponto notável. Aqui, nada de lamento, de melancolia. A fala de Ariadne é a de uma mulher destemida, voluntariosa, que fala da entrega amorosa como de uma decisão guerreira. “Seguiremos juntos” é quase um estribilho no poema. Mas o diálogo com o mito traz sombras perturbadoras. Ariadne salvou Teseu do labirinto, com o seu célebre fio, mas sua natureza íntima é a de uma aranha, e ela pode devorá-lo. Esse é um poema especialmente rico em sugestões, muito complexo em sua rede imagética, na qual uma forma de amor se espelha na metáfora da escrita: “ Eu, Ariadne, / caminho no que teço,/ no que vomito/ da náusea de fiar/ os novelos exatos.” No trecho final, o poema fala de sua própria construção; mas como todo ele é uma longa réplica de Ariadne, produz-se aí uma fusão do sujeito poético e da personagem em que ele se projeta. “Te atravesso com a espada/  de meus gritos,/ tua solidão é minha/ como os mitos/ com que teço esta rede/ armadilha de seda,/ projeto para o sono/ deste monstro que habita/ os labirintos.”  [8]

            Judite, como se sabe, é a heroína bíblica que salvou o seu povo, oferecendo uma noite de amor ao general inimigo, Holofernes, para em seguida matá-lo. No poema que leva seu nome no título, uma cena se desenha com extrema minúcia: o momento em que Judite se prepara e se enfeita para ir à tenda do inimigo. “Esta noite eu irei” é o estribilho desta fala, que concentra num agora de alta densidade dramática a antevisão do ritual de sacrifício e vingança: “Esta noite eu dançarei/ entre facas e abismos,/ sua espada nas mãos,/ seus urros nos ouvidos.” [9] O misto de lucidez e delírio com que se tece essa descrição de uma ação futura, como se já perpetrada, fez-me lembrar a cena em que Medéia, por uma estratégia de enunciação muito similar, expõe o seu plano de vingar-se de Jasão. Medéia toma como cúmplices as mulheres do Coro. No poema de Myriam, o cúmplice é o leitor, que conhece o relato bíblico, e participa dos preparativos desse gesto extremo. 

             Dois dos poemas que fazem parte desse grupo possuem um tipo semelhante de construção, embora o tom da fala e o ritmo dos versos sejam bem diferentes. No primeiro, “Anunciação”, uma mulher aparentemente fala das visitas que recebeu, ao longo de sua vida, de um estranho deus, que gosta de se metamorfosear, e a cada momento pode aparecer sob a forma de uma estrela, uma chuva de ouro, um cisne branco ou um touro de cornos de bronze. Indícios que levarão o leitor a pensar em Zeus, pai dos deuses gregos, sempre pronto a usar um disfarce que facilite suas conquistas amorosas. Ao final, sabemos que quem fala é Maria, mãe de Jesus, e que a visita do anjo da Anunciação é uma das metamorfoses daquele mesmo estranho deus. Assim, a Maria do Novo Testamento torna-se um último avatar, o ponto de culminância das experiências de uma série de mulheres, ao longo do tempo. É preciso notar que aí temos uma forma diferente de locução, se comparada aos poemas que citei antes. Para quem fala Maria? Ela não se dirige a um interlocutor, no plano ficcional, como Maria Bonita ou Ariadne. O leitor está diante de uma fala que é dirigida a ele, ao modo de um relato. Isso atenua o processo de auto-dramatização, mas ainda assim temos uma personagem em cena que constrói a si mesma através do relato. [10]

            O outro poema, de construção comparável a este, é “Trajetória”. Ouve-se aqui a voz de uma mulher que se apresenta como a soma das experiências de diferentes figuras históricas, desde a Judite bíblica, que aqui reaparece, até Isabel, a católica. Ao refazer esse percurso, em sua fala, a personagem subverte o sentido das referências históricas até apagar-se na derrisão do momento atual. Eu diria que neste momento Myriam faz uma retomada paródica de alguns de seus próprios poemas. A mulher heroína, que principia dizendo: “Eu,/ que decepei a cabeça/ de Holofernes/ e apascentava os leões com vinhos de Marsala./ Conclui, com sarcasmo:  “Hoje masco chicletes/ perfumados a menta,/ estrela absoluta/ dos filmes de pornô.” [11]

            Esse movimento de subversão das leituras do mito reaparece, por exemplo, em “Penélope”, que, junto ao poema anterior, são recordistas de recitais e encenações. Não sem razão. Penélope aqui é dona de uma cena toda sua, à qual ela mesma impõe os limites: “Hoje desfiz o último ponto,/ a trama do bordado.” [12]  E essa imagem traz a sugestão de que – assim como a estrela pornô com hálito de menta já estava, numa remota encarnação, na Judite bíblica – a Penélope que reserva para Ulisses, serenamente, uma sopa fria, já estava, em gérmen, na paciente tecelã de um tapete infindável. Mas esta “revelação” não pode ser submetida à prova da verdade: há algo que só se desvela aqui, na cena do poema, por efeito da fala de Penélope, que a destaca da condição de figura de um bordado para a de sujeito de um discurso.

            Joana d’Arc talvez seja a figura histórica mais revisitada pela imaginação de poetas, dramaturgos, romancistas, cineastas. A Joana de Myriam Fraga repete o desamparo de Jesus no momento final, na cruz, que é o desamparo de todos nós, de todo aquele que ousa fazer a grande interrogação: “ Onde estará o Rei/ que me abandona?/ E Deus e Deus e Deus?” [13]  É notável como esse recurso da projeção do “eu” em figuras roubadas ao repertório mítico-histórico pode produzir personagens bem diferenciadas, com corpo e fisionomia própria. Assim, podemos falar da Joana ou da Maria Bonita de Myriam Fraga, como falamos da Maria Bonita de Marcos Barbosa [14], ou da Joana d’Arc de Bernard Shaw.

            Isso vale também para “Salomé”, poema em que a autora nos transporta para um momento que está fora do tempo, das referências bíblicas, mas que se torna dolorosa e ironicamente plausível: vemos uma Salomé que rememora a grande cena que lhe deu origem. O rei está morto, e ela ainda é detentora dos véus e da bandeja que um dia ostentou a cabeça ensangüentada do homem que ousou desprezá-la. Mas esta Salomé, no espaço do poema, está condenada a girar, dia e noite, em torno desta cena, e aqui tudo o que dança são memórias. “Ó funesta tentação/ de voltar àquela tarde/ em que dançando selvagem/ ao som de flautas,/ congelei a tua imagem/ no fundo das retinas.” [15]

            Os “Sete poemas de Maria de Póvoas” podem ser lidos como uma longa réplica endereçada ao poeta Gregório de Matos, em sua partida para o degredo. Aqui (como antes em “Maria Bonita”), o perfil do amado, o Gregório que nos é dado ver, é refletido nas lentes embaçadas pelo pranto de uma mulher ferida, que se humilha a cada verso (“a quem pisaste um dia/ como pisa o dono/ o chão de seus alqueires”) mas que, na dicção do poema, assume a autoria da cena e estabelece não só os traços daquele a quem fala, mas as próprias motivações da sua ação: “Eu sou a terra/ a quem amaste tanto/ que caíste a sangrar/ em suas pedras/ e onde rolaste, porco/ a chafurdar na lama.”  A configuração dramática desta sequência de alocuções ao poeta, que imaginamos mais e mais a afastar-se, é reforçada pela mudança de ponto de vista, no poema III, que interrompe essa fala exaltada com o distanciamento de um Corifeu que comentasse o desesperado lamento da personagem. “Maria de Póvoas,/ Maria dos Povos,/ Maria, alma ardente/ e as mãos tão vazias...”  [16]

            Dois poemas que completam esta seleção foram deslocados de outras seções do livro. “A Esfinge”, da parte intitulada Bestiário, realiza um movimento semelhante à personificação e auto-dramatização que percebo nos anteriores. Antes do poema de Myriam, a Esfinge é algo de que se fala, no máximo uma figura do medo personificado com a função de Grande Obstáculo, de Grande Outro no caminho de Édipo. Mas aqui ocorre uma transmutação que nos coloca diante de um novo mistério: de uma Esfinge que se narra, que se profetiza, que oferece lampejos de seu interior, como faz todo aquele que é sujeito de uma fala. “E por saber que a morte/ é a última chave,/ adivinho-me nas vítimas/ que estraçalho.” [17]

            No poema “A Casa”, trazido da seção Clepsidra, do mesmo livro, quem é que fala? É uma dona de casa? É a dona da casa? Por força da auto-dramatização, quem fala é a dona desta casa, desta cena, desta construção poética e também desta vida, a única que poderia ser a dona desta casa, aquela que perdeu asas e dedos na sua edificação (ou seria na sua tecelagem?) e a única que pode recompor, ainda que com dedos quebrados, a “cumeeira arrasada”. [18]

            Existe aí, mais uma vez, essa teatralidade constitutiva, essa capacidade de construir ações mescladas a imagens muito vívidas de exaltada percepção do mundo e de si mesma. Essa poesia institui seu próprio campo de visão, sua própria ópsis, e faz com que a solidão do eu poético se torne espetacular, pela força das imagens.

            Cada uma dessas cenas requer um tempo e um lugar que já escapam ao domínio do mito, um cenário que se abre à experiência subjetiva e à imaginação, que é o espaço onde o desejo está sempre em movimento. Todas essas figuras de mulher são, sem dúvida, ainda outras tantas personas desse sujeito poético que, ao mapear seus íntimos territórios, seus sonhos e memórias, seus mitos pessoais, descobre que lá habitam esses seres estranhos, sempre fugidios e sempre insistentes, com suas histórias que se repetem infindavelmente. Myriam Fraga, através de sua sensibilidade histriônica, capta-lhes o movimento, o gesto, a ação, e lhes dá forma e fisionomia reinventadas, revigoradas; dá-lhes um corpo, uma fala que constitui todo seu ser e estar, aqui, em cena, diante do leitor, num palco que outro não é senão o palco da linguagem.


REFERÊNCIAS:

FERGUSSON, Francis. Evolução e sentido do teatro. Trad. Heloísa de Hollanda G. Ferreira. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964.

FRAGA, Myriam. Femina. Salvador: FCJA; COPENE, 1996.


                                                                                 


[1]  “A ‘sensibilidade histriônica’ é outra expressão que usei tão frequentemente que quase adquiriu significado técnico: a arte dramática baseia-se nessa forma de percepção como a música baseia-se no ouvido. (...) Quando percebemos diretamente a ação que o artista pretende, podemos compreender a objetividade de sua visão, seja como for que ele tenha chegado a ela; e em consequência a própria forma de sua arte.” FERGUSSON (1964, p. 236-241).
[2] Dentre essas realizações, merece destaque o espetáculo Poesia é Coisa de Mulher, com direção de Andrea Elia e roteiro de Claudius Portugal (incluindo também poemas de Cacilda Povoas, Mônica Costa e Aninha Franco), produzido pela Companhia de Teatro Nós Três, com as atrizes Tatiana Lima, Andréia Souza e Fernanda Paquelet, na Escola de Teatro da UFBA, em 1997. O título vem de um verso do poema “Ars Poética”, que integrava o roteiro, além de “Corpo”, “A Esfinge”, “Provérbios”, “Trajetória” e “Penélope”, todos do livro Femina. . 
[3] FRAGA (1996).
[4] FRAGA, op. cit., p. 32.
[5]  FRAGA, op.cit, p. 33.
[6] FRAGA, op.cit., p.11.
[7] FRAGA, op. cit., p. 13.
[8] FRAGA, op.cit., p. 22.
[9]   FRAGA, op.cit., p. 24.
[10]  FRAGA, op. cit., p.16.
[11]  FRAGA, op. cit., p. 28.
[12]  FRAGA, op. cit., p. 29.
[13]  FRAGA, op.cit., p. 14-15.
[14]  Da peça Lampião e Maria Bonita, que entre 2003 e 2005, após temporada em Salvador, apresentou-se  em tournée por várias cidades brasileiras, com direção de Elisa Mendes.
[15]  FRAGA, op.cit., p.36.
[16]  FRAGA, op.cit., p. 38- 47.
[17]  FRAGA, op. cit., p. 83.
[18]  FRAGA, op. cit., p. 118.

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