sábado, 30 de novembro de 2013

                                            Foto de Aristides Alves


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
LONGA JORNADA NOITE ADENTRO

Para senhor Epifânio
In memoriam


                   O texto e a encenação
           A encenação de Longa Jornada Noite Adentro encontra-se em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro, até 15 de dezembro. O texto é do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888 – 1935) e a tradução de Helena Pessoa. A direção é do ator-diretor e professor Harildo Déda, uma Produção da Companhia de Teatro da UFBA.
           O público soteropolitano tem a oportunidade de apreciar um texto que, por sua envergadura e importância capital para o teatro, não é levado à cena com a regularidade que merece. A Companhia de Teatro da UFBA, com todas as dificuldades que enfrenta, preenche uma lacuna. Estamos diante de uma encenação que cumpre seus objetivos, pois dá conta da importância e complexidade do texto.
            A peça conta sobre a família Tyrone. O’Neill mergulha no passado de sua família no momento em que vive a crise desencadeada por situações trágicas que envolvem todos os membros,  sobretudo a mãe Mary Tyrone, e Edmund, o filho mais novo. Revolvendo o passado de sua família, sem reduzir o texto somente a uma autobiografia, o autor mostra-nos o dilaceramento dos personagens, todos eles enlaçados pelo amor. Mas este afeto não consegue aplacar o sofrimento que marca a vida familiar. Confinados em uma casa isolada, atravessam o dia e a noite perscrutando a si e principalmente ao outro, de forma a expor seus sonhos e suas frustrações. Diante de seus dramas, não conseguem perdoar-se uns aos outros, embora o amor entrelace estes seres, tornando o conflito ainda maior.
           Através das amargas críticas, o passado emerge de maneira crua. No entanto, paira no ar alguma coisa que se quer esconder. Movidos por uma autointerdição, os personagens usam das meias palavras para não revelar o que de fato fragiliza a todos: a tuberculose de Edmund e o vício morfinômano da mãe. Acrescente-se a este quadro a avareza paterna e a embriaguez de Jamie Tyrone, o filho mais velho: o problema de um afeta ao outro, numa teia de situações melodramáticas que talvez fossem apressadamente consideradas hoje em dia como piegas ou "teatro de segunda", mas que em nada afetam a grandeza do texto. Um travo melancólico perpassa cada cena do longo texto finalizado por Eugene O’Neill, em 1941.
           Ao concluir sua obra, o autor decidiu que ela seria encenada vinte e cinco anos após sua morte, visto que um dos personagens ainda vivia. Ainda assim, o texto não pode ser lido ao pé da letra como uma autobiografia. Melhor seria vê-lo como uma bioficção. O que transborda das páginas e do palco é criação. A imaginação do autor entra em ação para dar vida aos acontecimentos da peça, mesclando o seu mundo particular com dados da realidade. Isso é fruto de sua capacidade criadora, inventiva, que torna as particularidades de Longa Jornada Noite Adentro amplas, universais. Estas qualidades fazem com que o texto continue atual, visto sua atemporalidade.
           Na peça, o dia avança ensolarado para declinar na neblina de uma noite escura, iluminada pela luz de um farol que surge em diversos momentos da ação. Paradoxalmente, é nas sombras da noite que o interdito é revelado de maneira clara. Nem mesmo o efeito da morfina que anestesia Mary Tyrone impede que ela complete o círculo e retorne como um ouroboros, ao início de tudo. Aí se dá o eterno retorno. O passado resurge em sua potência e a personagem revela o momento em que, deixando uma pretendida vida de religiosa, se apaixona pelo famoso ator James Tyrone, marco inicial desta família que vem a ser solitária e debate-se entre a acusação e o afeto.  
           O texto em quatro longos atos é reduzido para dois, de maneira sábia e oportuna por Harildo Déda. Diante da aceleração do tempo presente, levar à cena Longa Jornada Noite a Dentro  sem os cortes necessários, afastaria o espectador desacostumado a apreciar eventos deste porte.
           Sabedor do realismo do texto, o encenador não se prende a uma fórmula, quebrando algumas regras da estética convencional: não está em cena o realismo histórico. O que se vê no palco é uma encenação apoiada no texto, sem se escravizar a ele. Marcando com rigor e dinamismo, Déda faz a sua leitura de Longa Jornada Noite a Dentro sem cair na facilidade amenizadora do drama que se desenrola passo a passo. Considerando seus momentos de alta e de baixa intensidade, o encenador colore a cena apoiando-se numa partitura em que as pausas e os silêncios completam o dialogar constante dos personagens. Precisam falar, precisam ser ouvidas. Precisam dizer de suas angústias.
           A encenação revela uma segura direção de atores. A cena é desenhada com marcas objetivas e de grande efeito, fazendo os atores se deslocarem em função das dinâmicas da ação. São visíveis, mas não óbvias, a construção a partir da análise ativa, um princípio stanislavskiano e uma escolha adequada para o universo da peça. Este caminho não congela as interpretações em maneirismos; ao contrário, aprofunda a dimensão física de cada ator na relação com o espaço e com os objetos. Gestos, pausas, deslocamentos ampliam a intersubjetividade do drama, mantendo os espectadores como observadores atentos. Ao mesmo tempo, Déda impõem estratégias que rompem com o fechamento do palco, trazendo os personagens para mais perto da plateia.
           Contando com cenário e luz de Eduardo Tudella, lembrando ambientes do pintor Edward Hooper, o encenador orquestra com bastante segurança os elementos constitutivos do seu espetáculo. Preocupa-se com a tensão e a investigação interior, muito mais do que com a história, pois o foco de Eugene O’Neill está no confessionalismo: isso faz com que o passado seja escavado intensamente. Ainda que mostre o domínio criativo e técnico, a cenografia poderia valer-se de alguns recursos que expressassem a decadência do lar. A decadência não está somente nas relações da família Tyrone, mas na própria casa. Contudo, isso não diminui a qualidade do que se vê em cena: somente que estes elementos faltantes proporcionariam ao espectador mais um dado a ser lido como um signo relevante.
           É notável o controle das emoções, mantidas esticadas ao longo do tempo ficcional, sem extrapolar os limites dramáticos. O que poderia tornar-se melodramático ou mesmo piegas é evitado ao longo dos acontecimentos.
           Cercado por uma equipe técnica de eficiência comprovada pelos detalhes da produção, um único senão salta aos olhos: o vestido rosa de Mary Tyrone no segundo ato, assim como a gravata brilhante da empregada Cathleen. Nos demais figurinos, Claudete Eloy acerta com bastante sobriedade, pois compreende o universo onde transitam os personagens, bem como a época em que se passa a ação. O corte das roupas femininas e masculinas, bem como a paleta de cores, harmoniza-se com o sóbrio e criativo cenário.
           A luz recorta o cenário, marcando os climas exigidos pela densidade dramática, colaborando para a atmosfera das cenas. O efeito final, com a luz do farol entrando pelas janelas, adéqua-se à situação na qual, sob o efeito da morfina, a mãe surge na sala como um fantasma, calando marido e filhos. Densa e bela, a cena, intensificada pelo Adágio para Cordas, de Samuel Barber, sustenta o entrecho e dá suporte para o monologar de Mary Tyrone. Com parcimônia, a sonoplastia contribui também para a profundidade emocional. A sirene de neblina que se ouve em alguns momentos corta os silêncios, aumentando a solidão dos que estão na casa. Solidão essa vivida pelo grupo familiar disfuncional. Este grupo se alterna em instantes de acusação e provocação, atitudes que escondem o que há de mais humano, o afeto. Sentimento que nutre pai, mãe e filhos, unindo-os, ainda que se avizinhe a derrocada final.
           Harildo Déda orquestra o canto fúnebre de Eugene O’Neill com grande segurança,  acerta nas suas escolhas.
           Retornando ao texto, focalizando o aspecto de biografia dramatizada, vemos que Edmund, o poeta persona do autor, se erguerá pela arte, como foi de fato a vida de Eugene O’Neill. O autor revive teatralmente o verão de 1912 como dramaturgo sabedor do seu ofício, e não se deixa prender somente pelos dados da realidade. O que se vê em cena é fruto de um processo de criação; dolorido é certo, mas profundamente humano, e é por isso que ecoa em nós, ainda que vivamos noutro tempo. No entanto, se olharmos atentamente para o drama de cada um dos personagens, veremos que eles não estão assim tão longe das nossas vidas, pois nos debatemos, de uma maneira ou de outra, com os mesmo problemas enfrentados por James, Mary Jamie e Edmund: o entorpecimento pelas drogas, a sovinice, os projetos não realizados e as demais doenças do corpo-espírito. No entanto, assim como os personagens de Longa Jornada Noite Adentro, ainda somos capazes de amar, pois somos humanos, contrariando o discurso da pós-humanidade defendido por certas correntes do pensamento pós-moderno.

           O elenco
           Uma encenação de qualidade, na qual os signos se organizam esteticamente, não deve prescindir de um elenco com capacidade para sustentar os personagens, ainda mais em um texto de envergadura como Longa Jornada Noite Adentro. Déda, não só diretor, mas ator de longa experiência e conhecida competência como professor de atores, soube escolher cinco intérpretes que se responsabilizam por dar vida às criações de Eugene O’Neill. E, seguindo suas orientações, o fazem com competência e unidade.
           Joana Schnitman (Mary Tyrone), Antonio Fábio (James Tyrone), Wanderley Meira (Jamie Tyrone), Vinicius Martins (Edmund Tyrone) e Patrícia Oliveira (a criada Cathleen) conseguem exteriorizar a densidade psicológica, mantendo as interpretações na justa medida esperada para personagens bem estruturados pelo autor, ainda que ele não tenha se debruçado com mais atenção no papel da criada.  O texto traza poética realista que necessita de uma construção espelhada na vida, mas o que vemos na cena e nas interpretações não é uma fatia da vida, mas uma elaboração por métodos que remetem aos princípios stanislavskianos.
           Compreendendo os personagens passo a passo, desde a análise até a vivência, os intérpretes revelam a maturidade e as variadas qualidades adquiridas com as experiências individuais ao longo de suas carreiras. Por eles, o encenador fala e se oculta, de modo que os exercícios formais estão sempre a serviço dos que estão em cena durante as duas horas em que decorre o espetáculo. Cabe aos atores, muito bem conduzidos pr Harildo Déda, modular o tempo ficcional à medida que este decorre da manhã à meia-noite, momento em que os demônios internos estão expostos. E é neste tempo que cada intérprete faz aparecer a sua construção, como se desenrolasse um novelo gradativamente, prendendo pela emoção a atenção do espectador. É notável o equilíbrio interpretativo, o que faz da encenação o lugar próprio do ator.
           Joana Schnitman constrói Mary Tyrone com sensibilidade aguçada: modula as emoções exigidas pelo papel. A atriz demonstra suas qualidades de intérprete numa estatura que somente as grandes atrizes são capazes de trazer para a cena. Sutilmente, a intérprete revela-nos os problemas que afligem a personagem, sua fixação em algo que se descobre na medida em que a ação se desenrola. Sua atuação é magistral, culminando com o monólogo final.
           Sobre a interpretação de Antonio Fábio, no papel de James Tyrone, o que se pode dizer é que o ator cresce superando os limites físicos, já que imaginamos o personagem como uma figura imponente, ídolo das plateias.  James é um ator que abre mão dos personagens grandiosos para encantar com sua beleza as mocinhas que iam ao teatro quando ele era o astro. Ator expressivo, Antonio Fábio caracteriza o personagem, mostrando sua arrogância e, principalmente, sua avareza. Em alguns momentos, o ator deixa entrever a humanidade escondida por trás da carapaça conservadora, mas volta a escondê-la, principalmente nas cenas com Jamie, personagem que Wanderley Meira faz de maneira vibrante. Nas cenas com Joana Schnitman, Antonio Fábio alterna afeto, mostrando-se inseguro, mas defendendo-se sempre das acusações desferidas por ela. A contracena entre eles é bom teatro.
           Como disse anteriormente, Wanderley Meira mostra seu personagem de maneira intensa, mostrando-se um ator de extensão interpretativa. Na perigosa cena da bebedeira, o ator transita de maneira precisa. Fugindo do clichê, assenta sua atuação variando os estados psicológicos que passam pela culpa, pela zombaria, resvalando pela inveja, para em seguida mostrar sua fragilidade diante do drama materno e da situação do irmão caçula. Representando um ator cuja carreira, imposta pelo pai, não deu certo, o Jamie de Meira  é um farrapo humano sem perspectiva. Wanderley Meira se encarrega de fazer com que estes estados anímicos tornem-se visíveis ao longo da ação.
           Vinicius Martins, o mais jovem entre os quatro intérpretes, encarrega-se de levar para a cena Edmund, o alterego de Eugene O´Neill. Aluno do Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro, Martins vem experimentando o palco como ator e vem crescendo a cada peça que faz. Quem o viu em Fala Baixo Senão Eu Grito, sob a direção do aluno-ator Georgenes Isaac, pode ter esta medida. O personagem criado por Vinícius Martins deixa transparecer o papel que ele exerce na peça, ou seja, Edmundo, ao mesmo tempo em que é participante, é espectador desse mesmo drama.
           Coube a Patrícia Oliveira o papel da criada Cathleen, um personagem que O’Neill não construiu como os outros. A atriz recém formada soube conduzir de maneira muito especial a figura da criada, injetando-lhe doses de ingenuidade e, ao mesmo tempo, sagacidade. Sua participação na ação proporciona o alívio cômico em meio à densa atmosfera que perpassa a peça.  Sua conduta na cena com Mary Tyrone tem um ar brejeiro e ao mesmo tempo safado, quando se serve da bebida do patrão. Vejo que Patrícia Oliveira valoriza e tira partido de um personagem posto na peça pelo autor para alinhavar o enredo. Sai-se bem a jovem atriz.

               Equipe Técnica
           A equipe mostra sua competência. Com seu empenho, o acontecimento chega ao espectador da maneira como foi concebido. Por ser um espetáculo da Companhia de Teatro da UFBA, é de estranhar a pouca participação de alunos nestas funções, mas vale registrar a presença de Pedro Souza na operação de som, João Saraiva e João Guizande como assistentes de produção. A ausência de outros alunos faz lembrar um fato muito importante quando da constituição da Escola de Teatro como espaço artístico-pedagógico. Nos espetáculos de A Barca, grupo criado por Martim Gonçalves, os alunos revezavam-se no palco, ora em papéis principais, ora em papéis secundários. Quando não estavam em cena, desempenhavam outras funções necessárias para o fazer teatral: eram assistentes de cenografia, de figurino, faziam a contraregragem,  recepcionavam o público. Este procedimento era parte da pedagogia do teatro.
           Finalizando, cabe ressaltar o cuidado com o material de divulgação de Longa Jornada Noite a Dentro, tanto os registros do processo em vídeo e fotos, quanto os cartazes, programa e marcadores de livros, todos muito bem concebidos e realizados.


Raimundo Matos de Leão

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